A
Medida Provisória (MP) nº 746, de 2016, encaminhada ao Congresso
Nacional pelo presidente golpista Michel Temer com a finalidade de
reformar o ensino médio público, carrega consigo as marcas do
autoritarismo, da ilegitimidade, da extemporaneidade, da segregação
socioeducacional e da redução de direitos dentro de uma agenda
neoliberal mais ampla imposta ao Estado brasileiro.
*Por Roberto Franklin de Leão
O critério de formulação da reforma não atendeu quaisquer requisitos
democráticos para se discutir políticas públicas, sobretudo no campo
educacional. E isso constitui vício insanável de origem da proposta
governamental, pois a sociedade e a comunidade escolar em particular
foram literalmente excluídas do debate.
Outro agravante do ponto de vista formal da reforma diz respeito ao
sequestro do debate parlamentar. Deputados e senadores terão prazo de
apenas sessenta dias para discutir a matéria, podendo esse período de
tramitação ser prorrogado uma única vez, totalizando 120 dias corridos
na Câmara e no Senado.
Sob a óptica jurídica, a MP nº 746 não atende os requisitos
constitucionais do art. 62 da Constituição, que exigem relevância e
urgência para publicação de medida provisória, com efeito imediato de
lei. A presente reforma do ensino médio não obriga a adesão dos entes
federados (ou seja, aplicá-la-á quem quiser) e seus efeitos serão
válidos somente para o segundo semestre de 2017, após, portanto, a
aprovação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Esses argumentos,
entre outros, embasam a ação direta de inconstitucionalidade (ADI)
movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)
no Supremo Tribunal Federal, com pedido de liminar para suspender a
tramitação da MP nº 746 no Congresso. Porém, transcorridos mais de
trinta dias, a ADI aguarda decisão do ministro relator Edson Fachin.
Ao desprezar o debate amplo e democrático na sociedade e no
Parlamento, a MP nº 746 se torna ilegítima. Contudo, o vício de
iniciativa fica mais evidente ao constatarmos que o conteúdo da reforma
contrapõe frontalmente os anseios e as reivindicações de estudantes,
professores, funcionários da educação e de boa parte dos gestores
públicos.
Logo em seguida à divulgação da MP, o secretário de Educação do
Estado do Rio de Janeiro emitiu opinião na imprensa considerando um
disparate o fato de a MP retirar dos currículos escolares disciplinas
importantes para a formação dos estudantes, com destaque para a Educação
Física, tendo em vista que o estado e a cidade do Rio de Janeiro, e o
Brasil, acabaram de sediar uma edição inédita de Olimpíadas no
continente sul-americano.
Dentre as muitas críticas que corroboram a ilegitimidade da reforma
do ensino médio destaca-se o fato de que ela se ampara num contexto de
ampla redução de direitos.
Em suma, a MP nº 746 está estreitamente alinhada com a proposta de
ajuste fiscal contida na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 241
(sob a numeração 55/2016 no Senado Federal), que causará impactos
profundos na sociedade e nas metas do Plano Nacional de Educação,
sobretudo nas que visam ampliar o financiamento e expandir as matrículas
escolares com qualidade.
Isso porque a reforma do ensino médio possui caráter eminentemente
fiscal. Opta por reduzir disciplinas e também a carga horária das demais
matérias de conhecimento geral que comporão a BNCC das escolas públicas
– não sendo obrigatória para a rede privada. Assim, os entes públicos
contratarão menos profissionais e em condições precarizadas, uma vez que
a Lei nº 9.637 permite terceirizar a contratação de professores e
demais profissionais da educação sem concurso público e sem direito a
piso salarial nacional ou mesmo plano de carreira, por meio de
organizações sociais (OS).
A nova redação do artigo 61 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB – Lei nº 9.394/1996), proposta pela MP nº 746, vai além e
acaba com a profissionalização do Magistério, admitindo a contratação de
profissionais de quaisquer áreas do conhecimento com base num
excêntrico “notório saber” a ser verificado em condições não
estabelecidas pela lei. Ou seja, reabrirá a porta da escola pública para
o clientelismo político, com grave ofensa aos princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência previstos no art.
37 da Constituição.
O impacto social mais evidente da reforma será a criação de um fosso
entre a educação ofertada às classes altas e médias – com acesso a
escolas privadas de alto padrão – e aos filhos e filhas da classe
trabalhadora. Na verdade, o Brasil está prestes a consagrar uma
segregação socioeducacional totalmente extemporânea para o século 21,
confinando a educação das classes populares a verdadeiros protótipos de
ensino profissional restritivo de conhecimentos, voltados apenas às
necessidades do mercado.
Ainda na linha do enxugamento de gastos, a MP nº 746 sugere um
cenário de retrocesso descomunal na oferta do ensino médio brasileiro,
retornando a situações de quatro a cinco décadas atrás. É que os
sistemas de ensino não serão obrigados a ofertar todas as áreas de
conhecimento específico, e haverá muitos municípios onde os estudantes
terão de deixar suas cidades para cursar áreas de seu interesse em
outras localidades – se houver disponibilidade!
A ajuda financeira da União aos estados, além de insuficiente, tem
prazo de validade de quatro anos e nenhuma garantia legal de ocorrer,
pois estará sujeita às condições do ajuste fiscal. Do § 2º do art. 6º da
MP 746 consta que: “A transferência de recursos será realizada
anualmente, a partir de valor único por aluno, respeitada a
disponibilidade orçamentária para atendimento, a ser definida por ato do
Ministro de Estado da Educação”.
Isso significa dizer que as escolas públicas continuarão sem os
recursos necessários para ampliar a jornada de 4 para 7 horas diárias,
com infraestrutura e equipamentos aptos para a oferta de educação
integral com qualidade, já que o correto seria investir na
regulamentação do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e do Custo Aluno
Qualidade (CAQ), conforme dispõe as estratégias 20.6 a 20.10 do Plano
Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014). Mas a MP nº 746 desconsidera a
regulamentação do CAQi e do CAQ.
De outro lado, a reforma não dialoga com o ensino superior. Em vez de
garantir acesso aos cursos tecnológicos e universitários, a MP sugere
ao estudante cursar mais de uma área específica no ensino médio,
reforçando o círculo da pobreza com a supressão do direito ao ensino
superior.
Sobre a organização curricular, a divisão das partes de conhecimento
(geral e específica) – não obstante amparar-se numa dicotomia pouco
produtiva e até então superada pela oferta concomitante do ensino médio
com a educação técnica-profissional, em que o estudante tem acesso à
formação técnica e humanística – propõe uma divisão de carga horária
bastante contestável. Num primeiro momento, quando a carga horária se
mantiver em 2.400 horas no total, as partes geral e específica ficarão
comprometidas. Depois, caso a jornada seja estendida para 4.200 horas
(tempo integral), a parte geral continuará prejudicada, pois sua carga
de trabalho será mantida em 1.200 horas, menos de um terço do total da
jornada escolar no ensino médio integral. E em momento algum a MP trata
da oferta do ensino noturno, que concentra a massa de estudantes
trabalhadores.
Com relação à supressão de disciplinas, a MP não apresenta em sua
justificativa qualquer base teórica para eliminar os estudos de
Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física do ensino médio. Pelo
contrário. Estudiosos da área afirmam que elas são disciplinas
importantes para a formação pessoal e cidadã dos estudantes, e o correto
seria mantê-las na parte geral de conhecimentos, podendo algumas serem
aprofundadas em áreas específicas.
O mesmo vale para a revogação da Lei nº 11.161, que trata do ensino
da língua espanhola. Como desconsiderar uma língua presente em todos os
povos de fronteira do Brasil e que é crucial para a integração de nosso
país ao continente sul-americano? Além do ensino médio, também a etapa
fundamental pública deixará de ofertar o ensino de espanhol.
A MP nº 746 esvazia o papel do Conselho Nacional de Educação,
remetendo para o Ministério da Educação e os sistemas de ensino
estaduais a regulamentação do ensino médio. E isso põe por terra o
esforço de uma década para institucionalizar o Sistema Nacional de
Educação.
Por fim, conforme destacado acima, a formação e a valorização dos
profissionais da educação são relegadas a segundo plano. A MP
flexibiliza a habilitação profissional dos trabalhadores em educação –
conquista da Constituição Cidadã de 1988 e da LDB de 1996 –,
admitindo-se contratar profissionais com notório saber, de qualquer
área, para ministrar aulas aos estudantes secundaristas, o que é um
crime sob o aspecto pedagógico.
* Roberto Franklin de Leão é presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).
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